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Ser perfeita cansa: Britney Spears que o diga

Framing Britney Spears

Se você estava vivo e com o mínimo acesso à Internet entre 2007 e 2008, não deve ter passado batido por algumas das imagens mais famosas de Britney Spears. Primeiro, raspando a própria cabeça numa barbearia; algum tempo depois, atacando o carro de um paparazzi com um guarda-chuva verde. 

As duas fotos são icônicas porque marcaram a virada de chave de uma carreira muito bem-sucedida. Foi ali que a cantora, até então idolatrada como a “princesinha do pop”, passou a ser massacrada publicamente e a perder o controle da própria vida. 

Essa trajetória rumo ao estrelato até o colapso está registrada em um recente documentário do New York Times, “Framing Britney Spears”, que busca desvendar o mistério por trás da custódia da cantora pelo pai, Jamie Spears.

Há mais de dez anos, é ele quem controla não só as finanças, mas basicamente todas as decisões da filha. 

O intrigante é que durante todo esse tempo ela trabalhou e fez muito, mas muito dinheiro. Ou seja: é considerada sã para performar em turnês mundiais, mas não para dirigir o próprio carro ou a própria fortuna. Curioso, não?

As especulações aumentaram nos últimos anos e os fãs deram início ao movimento #FreeBritney, com o objetivo de questionar a real necessidade dessa custódia e, sobretudo, os interesses por trás dela. 

No documentário, especialistas explicam que este tipo de decisão judicial geralmente é aplicado somente a pessoas muito idosas ou com doenças crônicas degenerativas que tiram do indivíduo a capacidade de gerir a própria vida. Ao que tudo indica, não é o caso de Britney.  

De exaltada à cancelada

Todo esse rolê do cabelo raspado, do ataque com o guarda-chuva e centenas de outras ‘pequenas tragédias’ da vida de Britney aconteceram em uma época em que as redes sociais ainda estavam engatinhando, mas mesmo assim ela ficou bastante exposta.

Imagino que tenha vivenciado algo semelhante ao que acontece hoje com a cultura do cancelamento. De uma hora para outra, saiu do posto de menina pura, virgem e ingênua e passou a ser taxada como bêbada, drogada, louca, descontrolada. 

A relação da cantora com a imprensa – que era amigável no início da carreira – foi se desgastando muito com o tempo. Também pudera: havia uma verdadeira obsessão dos fotógrafos sobre tudo que a envolvia. Cada clique valia muita grana. 

Gente como a gente

Me lembro que nessa época era bem comum ver fotógrafos se matando para conseguir um clique dela saindo descabelada e suada da academia; pegando um frapuccino no Starbucks com a maquiagem de ontem; ou simplesmente trançando as pernas depois de uma noitada com amigas como Paris Hilton e Lindsay Lohan. 

Eu morava em Londres em 2008 e todo dia pegava o jornalzinho no metrô que, na editoria de celebridades, se dividia entre as noitadas de Britney, nos Estados Unidos, e Amy Winehouse, na Inglaterra. 

Entendo o interesse por trás de fotos de celebridades sendo “gente como a gente”, pois elas humanizam e quebram o mito da perfeição. Mas o limite entre o que é aceitável ou degradante está cada vez menos claro. 

Britney é a prova viva de que tentar ser perfeito dá muito trabalho, porque, a partir do momento em que começou a ter suas falhas escancaradas, também passou a ter sua sanidade questionada.

Cristal sem defeitos

Essa exposição foi um grande combustível para o desgaste da saúde mental de Britney. Ela era bombardeada frequentemente sobre assuntos íntimos como sua virgindade ou o fim do relacionamento com Justin Timberlake (traiu, ou não traiu, eles queriam saber). 

Quando se tornou mãe, a coisa desandou: teria mesmo a capacidade de criar duas crianças? 

Essa invalidação pública das suas faculdades mentais, por si só, já seria algo muito pesado para um ser humano aguentar sem surtar. 

Mas, para além disso, acho um fardo igualmente devastador essa cobrança pela perfeição que se coloca em cima das mulheres, especialmente as que estão na mídia.

É como se tivessem que ser “cristais sem defeitos” e nunca, jamais, ir contra as expectativas da sociedade.

#FreeBritney, #free mulherada! 

A jornalista Alia E. Dastagir fez uma análise muito interessante do documentário em um artigo publicado no site USA Today. Ela reúne uma série de dados que mostram o quanto a história de Britney é simbólica em uma sociedade que supervaloriza a imagem e padrões de beleza super rígidos. 

Tentar corresponder a estas expectativas de perfeição é atender às expectativas do patriarcado. 

É fácil chamar uma mulher de “louca”, como fizeram com Britney, sem investigar todos os fatores que a fizeram surtar dessa maneira. 

Imagine o nível de cobrança que uma pop star mundial sofre em termos de corpo, de comportamento, vida sexual, capacidade artística, etc.? 

E esse ideal de perfeição que Britney simbolizava continua oprimindo mulheres, que estão cada vez mais insatisfeitas com seus corpos, com problemas de autoimagem distorcida, transtornos alimentares e psíquicos. 

Na busca por sermos perfeitas, nos perdemos. Ficamos frustradas, exaustas. 

A cultura das revistas teen dos anos 90 e 2000, que exaltavam em suas capas o padrão magra, branca e loira (ou seja, Britneys), agora tem uma penetração muito maior com a Internet e as redes sociais. 

Por isso é sempre bom lembrar que se nem as divas conseguem ser perfeitas, por que nós, pobres mortais, conseguiríamos?

O movimento #FreeBritney segue firme e o caso da custódia está na justiça, prestes a ter uma reviravolta. O documentário fica como um importante alerta sobre como a liberdade da mulher, em pleno 2021, ainda é algo frágil. 

Sigo torcendo pela libertação de Britney e de todas as mulheres que, de alguma forma, estão aprisionadas por essa busca pela perfeição. 


Referências

Vídeos

The New York Times Presents | Framing Britney Spears – Season 1 Ep. 6 Preview | FX
https://youtu.be/xXG28S8cAJU

Matéria citada

Framing Britney’ exposes a problem bigger than Britney
https://www.usatoday.com/story/life/health-wellness/2021/02/11/britney-spears-documentary-hulu-hits-close-home-90-s-girls/6723093002/

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Foto principal: FX Networks | Youtube/Reprodução


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